segunda-feira, 31 de outubro de 2016

18 de outubro - Dia da Cultura Cabo-verdiana

Esquina do Tempo: Geninho, o Menino do Mar

  • Escrito por  Manuel Brito-Semedo
Estória para as minhas netas Liana, Nicole e Aliyah
Esta estória fundamenta-se numa lenda que corre sobre o nascimento de Eugénio Tavares (Brava, 18.Outubro.1867 – 01.Junho.1930), Patrono do Dia da Cultura e das Comunidades, um dos filhos mais dilectos da ilha Brava, grande compositor da morna, Poeta, dramaturgo, ficcionista e jornalista polémico, reconhecido até aos nossos dias, não só em Cabo Verde como no mundo.
As ilhas de Cabo Verde, devido à sua posição geográfica, a meio caminho de Norte para Sul do hemisfério e entre três continentes, Europa, África e América, foram sempre um lugar de escala para os barcos que sulcam o Atlântico.
 Desde o tempo da pesca da baleia, ou mesmo muito antes disso, as ilhas eram procuradas por barcos, dos mais diversos tamanhos e de diferentes nacionalidades, para se abrigar, fazer aguada, abastecer-se de frescos e carne salgada, descansar a tripulação, consertar as velas e reparar os mastros, antes de prosseguir viagem em busca de outros destinos.
 Não raras vezes, as correntes marítimas e os ventos fortes desviavam os barcos e ocorriam naufrágios, sobretudo nas imediações das ilhas mais planas como Boa Vista, Sal e Maio.
 Nesse ano de 1867, o mês de Outubro entrou de má cara. Nenhum sinal da chuva tão esperada. Era a estiagem. Na Brava, Dja Braba, ilha mais ao Sul do arquipélago, a Ilha das Flores, o vento leste queimou o leito verde das ribeiras. A ilha perdeu o seu encanto e a própria Fajã d’ Água, antes com uma ribeira de água permanente, era triste de ver.
Os corações das gentes da ilha andavam desconsolados. As mulheres ocultavam o pranto e os homens olhavam para o céu e para o horizonte à espera de notícias, da chuva que não dava sinal e da terra-longe de onde não chegavam veleiros da América com a ajuda dos patrícios.
Nessa madrugada, como já era seu costume, Nhô José Pedro, acompanhado dos seus compadres Manuel d’Ana e João Mitília, todos da localidade da Fajã d’Água, lavradores e homens do mar, tinham combinado ir para a pesca, lá para as bandas dos ilhéus Rombo (Ilhéu Grande e Ilhéu de Cima), distantes umas seis milhas, para o Norte.
“Cretcheu” era um bote largo com cavername da árvore da mangueira, leve, mas resistente, construído ali mesmo na Fajã d’Água por Nhô Djandjan, mestre carpinteiro conhecido e respeitado em toda a ilha. Aproveitando um ventinho fresco, em poucas horas estão quase a chegar ao Djéu di Baxo.
 – Mas, que é aquilo ali a flutuar no mar?!
Remando com energia, os homens aproximaram-se e ficaram estupefactos com o que viram: destroços de um barco que tinha dado à costa. Mais além, a flutuar, um grande baú, de onde vinha o choro de uma criança.
 Içado o baú, mas com dificuldade devido ao peso, os três homens constataram que tinha dentro uma linda criança, rolicinha, de tez mestiça, tipo indiano, olhos claros, cabelos pretos e lisos, vestida com um lindo bibe bordado, deitada numa almofada e lençol com monograma. Por baixo da almofada, o baú, forrado com couro, estava cheio de livros numa língua estrangeira muito parecida com o português.
 Surpreendidos com o bebé, que não se cansava de chorar, decidiram regressar de imediato a Fajã d’Água. Nhô José Pedro, aflito, foi directo para sua casa levando a criança ao colo.
 – Tuda, Tuda, onde estás? Ah, estás aí?! Toma conta deste bébé. Ele não pára de chorar!
 Nhá Tuda, mulher experiente e mãe dos nove filhos de Nhô José Pedro, percebe de imediato que o que o menino tinha era fome. Logo, deu ordem para ir buscar leite de cabra, que ferveu e misturou com água, e improvisou uma mamadeira. Retirou uma tira de pano de um velho lençol de pano-cru, fez uma pequena rodilha em formato de uma boneca, que molhava no leite e dava ao bebé para chupar.
 Nhá Tuda fez isso várias vezes, enquanto cantava uma canção de ninar:

Ná, ó menino ná,
Sombra rum fugi di li!
Ná, ó menino ná,
Dixa nha fijo dormi...

Sono de bida,
sonho de amor,
Ou graça, ou dor...
És é nós sorte...

Se Deus, más logo,
mandano morte,
Quem que tem medo
Ta morrê cedo.

Ná, ó menino ná,
Sombra rum fugi di li!
Ná, ó menino ná,
Dixa nha fijo dormi...

Saciado, o bebé adormece profundamente.
 A decisão estava tomada: o menino precisava ser visto pelo doutor e não podia ali ficar porque não tinham recursos para cuidar dele. Tinham de encontrar alguém que o fizesse.
 Já na Vila da Nova Sintra, Nhô José Pedro dirigiu-se ao Posto de Saúde e foi atendido pelo velho doutor Vera Cruz, homem conceituado e querido de todos pela sua generosidade e humanismo, mas vivendo com uma grande mágoa por não ter tido filhos.
 Ficando sozinho com o bebé, o doutor mandou chamar o seu velho amigo Nhô Henrique Taninho, homem de leis e vogal da Câmara Municipal, para se aconselhar enquanto pensava na surpresa e na alegria que ia dar à mulher, Dona Maria Medina, e na felicidade que esse menino podia trazer às suas vidas.
 Depois das questões práticas, que incluiu a atribuição do nome ao bebé, a providência imediata foi tratar do seu baptismo:
Aos cinco dias do mês de Novembro de 1867, nesta Igreja Matriz de São João Baptista nesta Ilha Brava, baptizei solenemente e pus os santos óleos a EUGÉNIO, […] que nasceu a dezoito do mês transacto pela uma hora da manhã. Foram padrinhos Benjamim José da Vera Cruz e Dª. Maria Medina da Vera Cruz […] e para constar fiz este termo que assino. Era ut supra”.
O Cónego Vigário Guilherme de Magalhães Menezes.
  Veio a saber-se mais tarde que o barco naufragado era um veleiro espanhol, Guadalupe IV, que seguia de Corunha para Buenos Aires (Argentina) e se afundou junto às costas da ilha Brava, numa zona muito perigosa. Dos 200 passageiros que o barco transportava, apenas sobreviveu nesse incidente o bebé resgatado do mar pelos três pescadores da Fajã d’Água.
 Geninho teve uma infância tranquila e feliz. Frequentou a Escola Oficial da Vila e foi o melhor aluno da classe. Gostava de ler, acompanhava os padrinhos aos saraus de poesia e música romântica, escrevia versos em pedaços de papel que mostrava à Badinha – forma carinhosa como chamava a madrinha e mãe adoptiva – e fazia traquinices próprias da idade.
 As férias escolares dos meses de Julho, Agosto e Setembro, eram passadas, parte na Praia d’Aguada, na casa de Verão, com os pais adoptivos, parte na Fajã d’Água, com Nhá Tuda e Nhô José Pedro – Mãi Tuda e Pá Zé, a forma como os tratava – pelos quais nutria um carinho muito especial.
Com que ansiedade Geninho esperava por essas férias, sobretudo as na Fajã d’Água! Ali desfrutava da vida livre, sem horários, sem obrigações e, principalmente, sem sapatos, solto no pedjigal, a hortinha atrás da casa.
 Era vê-lo feliz a ajudar a cuidar dos animais, a brincar com os coleguinhas, a jogar a bola, a tomar banho de mar, a ir à pesca com o Pá Zé. Este chegou mesmo a ofereceu-lhe uma varinha de pesca de marmelo para o poder acompanhar nessas ocasiões.
À noitinha, na soleira da porta, Geninho vivia momentos mágicos com as estórias da Mãi Tuda e do Pá Zé. Pedia que lhe contassem estórias de Ali Babá e os quarenta ladrões, de piratas, de naufrágios, de sereias, da terra-longe e de como foi encontrado no mar. E sonhava...
 Nessas horas, Geninho pensava em como ele era um menino de sorte por ter dois pais e tão diferentes um do outro. O Pá Zé, pescador, explicava-lhe os mistérios do mar, enquanto o Padrinho Vera Cruz, doutor, ensinava-lhe música e o conduzia no mundo dos livros e da palavra.
 Como se isso não chegasse, tinha também duas mães, também diferentes entre si. A Mãi Tuda ensinava-lhe as cantigas e as estórias das gentes simples e a Badinha ajudava-o a costurar sonhos e a transformá-los em poemas.
– É como te conto, Geninho, o baú no qual chegaste a nós é o que a Mãi Tuda tem lá dentro no quarto e usa como mala. Os livros… os livros, esses, estão lá na Biblioteca da Câmara Municipal. Aliás, como és menino prendado e de boa cabeça, podes ir lá desfolhá-los. Foi o doutor Vera Cruz que me aconselhou a entregá-los à Câmara.
 Eugénio Tavares, com quinze anos, rapaz bonito, alto e magro, já com buço, entrou abruptamente na sala de costura onde ao finzinho de tarde Badinha se sentava a bordar e a tomar chá.
 Eugénio anunciou que tinha acabado de escrever um poema para a madrinha. Tencionava enviá-lo para o Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro. Clareou a garganta e leu o poema de forma pausada:

A BADINHA
 
Um dia caíra em
teu níveo seio
desmaiado botão,
que d’ uma
linda roseira
arrancara
violento tufão.

As tuas carícias
deram-lhe a vida,
e o anélito teu
foi o bálsamo que
deu força, alento
ao débil peito seu!

E a carmínia
bonita transformou-se
rapidamente em flor,
que se esforça por
derramar a jorros
reconhecido odor!

O imaculado anjo
da caridade,
que do Olimpo desceu,
és tu! E a flor, que, meiga e carinhosa,
embalaste, sou eu!

 Terminada a leitura, Badinha poisou o pano de bordar, levantou-se a custo e abraçou apertado o seu Geninho. Dos seus olhos caíram grossas e silenciosas lágrimas de felicidade, enquanto balbuciava:
 – Deus te abençoe meu filho e te faça grande e um homem de bem!
 Eugénio retribuiu o beijo e o abraço à Badinha e anunciou que precisava sair para ir a casa do primo Luís Medina mostrar-lhe o poema e treinar um pouco com a sua guitarra portuguesa.
 Chegou, finalmente, o Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, correspondente ao ano de 1885, com o poema “A Badinha”. A introduzi-lo, um belo texto de Luís Medina e Vasconcelos, a apresentar o “novo poeta”, Eugénio da Paula Tavares.
 
Nova Sintra
Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 777 de 19 de Outubro de 2016.
terça, 25 outubro 2016 06:00

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